Frase

"A inveja consome o invejoso como a ferrugem o ferro." (Antistenes)

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Mais uma bela crônica do mestre Misael Nobrega

O FUNCIONÁRIO PÚBLICO
Por Misael Nóbrega de Sousa
A gaveta foi fechada solenemente, como se o ato cerrasse também uma vida. Aliás, pode-se dizer que essa metáfora não sugere nenhum exagero. O relógio dependurado logo acima da escrivaninha, numa parede nua, pintada de ontem, remetia à porta de saída. Eram seis as badaladas tardias. E elas soaram como se mastigassem as horas. Apenas os ponteiros meio tortos, desalinhados, deixavam dúvidas quanto à sua exatidão. Pura afronta. Talvez, eu é que tivesse estado ali por tempo demais. A força estúpida da prematuridade – derivada dos viços primaveris – havia dado lugar a uma flacidez quase decrépita - uma visão atrofiada, feito insígnia do tempo perdido. Notei que a velha máquina de escrever ainda estava lá, meio que aposentada. Não diria desprezada. Havia muito de importância naquelas fitas gastas em intermináveis ofícios, encaminhados aos mais aristocráticos destinatários. Se com os idos, tudo vira obsoleto, o que dizer de mim?. Um funcionário público de carreira que não aprendera a fazer outra coisa. Agora batia continência para o velho no vidro da porta, cujo reflexo era dele mesmo. Um ato contínuo de dever cumprido. Não chego a questionar se valeu a pena... Dei a volta pela mesa arrumada para a retirada – os apetrechos estrategicamente diminuídos como que se despedindo. Fiz de propósito, confesso – Pelo menos, aqueles seres inanimados não sentiriam compaixão. Nada mais havia por fazer. Caminhei em direção à luz da rua. De passagem, peguei o casaco que repousava na cadeira de pinho. Desliguei o interruptor e sem me esquecer de carregar da estante um Cervantes – Fiel escudeiro de tardes mornas, - ensaiei a descida. A porta trancou-se atrás de mim. Após cada degrau vencido, recuperava o fôlego. As imagens me seguiam em reverência. Tudo me doía. A demora era justificada, pois não conseguia demover a idéia de não olhar para trás. Já estava adiante quando arrisquei uma despedida. E só investi no próximo passo, quando tive a sensação de que outro homem era quem saía.
Professor e Jornalista

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