Frase

"A inveja consome o invejoso como a ferrugem o ferro." (Antistenes)

domingo, 2 de maio de 2010

Texto do professor José Romero Araújo Cardoso

“Não façam isso comigo, sou um sacerdote católico!”: Notas sobre o sangramento do Padre Aristides Ferreira da Cruz

(*) José Romero Araújo Cardoso

Convivi e conversei muito com o brioso oficial da Polícia Militar Paraibana, Coronel Manuel de Assis, pois assim como eu, o saudoso valente guerreiro das caatingas nasceu na velha terra de Maringá. Arruda era um homem espetacular, ser humano formidável, possuía prosa animada, muito atencioso e dotado de memória prodigiosa.
Apesar das qualidades ímpares, Arruda era afoito demais, pois querer enfrentar a Coluna Miguel Costa – Prestes, quando da passagem por Piancó (PB), em fevereiro do ano de 1926, foi um ato temeroso e intempestivo, mas que lhe rendeu honraria do governo do Presidente João Suassuna por bravura – a espada do herói!
Arruda negava peremptoriamente os fatos, mas sem sombras de dúvidas foi ele quem abriu fogo contra a vanguarda dos militares insurrectos, abrindo os portais dos infernos para a cidade de Piancó e seus defensores.
Nas inúmeras conversas sobre a passagem da Coluna pelo desditado município paraibano, havia incontida emoção quando o velho combatente falava sobre o Padre Aristides Ferreira da Cruz, vigário e chefe político da cidade sertaneja literalmente arrasada em fevereiro do ano de 1926.
O Coronel Manuel Arruda de Assis informava que o Padre Aristides nasceu no então distrito pombalense de Lagoa. Quando de minha fixação no Estado do Rio Grande do Norte, efetivamente a partir do ano de 1998, fiquei sabendo por intermédio de informações fornecidas por dileto amigo de nome Raimundo Soares de Brito, verdadeiro arquivo vivo da cultura potiguar, que o Padre Aristides havia exercido o cargo de vigário em Caraúbas (RN).
Arruda narrava que o Padre Aristides era inimigo de muita gente em Piancó, mas que todos o respeitavam. O vigário andava com inseparável F. N. Brown na cintura, acompanhado de grupos de capangas, era metido com tudo que não prestava no sertão daquela época, viveu maritalmente com jovem da localidade, tiveram filhos, enfim, como dizemos no sertão, era mais desmantelado do que voo de anum molhado ou galope de vaca amojada.
Quando os informes enviados de Pombal (PB) chegaram em Piancó (PB), notificando sobre a passagem da Coluna Prestes por Malta (PB), avistada em composição de “setenta homens esfarrapados, desmuniciados e famintos”, o Padre Aristides se animou em enfrentar a prova de fogo. Acompanhado de Arruda, pois era inimigo do telegrafista, passou telegrama para Júlio Lyra, chefe de polícia de Suassuna, comprometendo-se em conseguir dois mil homens em armas no prazo de quarenta e oito horas, proposta prontamente aceita pelo governo do Estado. Não obstante os esforços, Padre Aristides não conseguiu reunir o número de homens prometido para a defesa.
Mas o que ninguém sabia em Piancó era que isso consistia em uma tática de Prestes, a guerra de movimento, depois usada por Mao-Tsé-Tung, quando da grande marcha pela China, a fim de ludibriar o inimigo. Prestes dividia a coluna em inúmeros subgrupos que se reuniam em local previamente determinado em cartas e mapas. No caso paraibano, o ajuntamento de forças estava programado para ser feito em Coremas, o que aconteceu.
Conforme Arruda, o contingente da Coluna Miguel Costa-Prestes era tão grande que quando a vanguarda entrava em Piancó a retaguarda ainda estava montando nos cavalos em Coremas, um percurso de trinta e seis quilômetros.
Quando a Coluna entrava em Piancó, descargas certeiras alvejaram cavalos e cavaleiros. Daí por diante fechou-se o tempo, quando intenso tiroteio transformou Piancó em praça de Guerra. Vinha de ambas as partes, mas com maior intensidade, devido ao número de componentes, disparado pelos integrantes do movimento tenentista originado no sul do País.
O ódio que a Coluna Miguel Costa – Prestes passou a devotar ao piquete do Padre Aristides teve seu recrudescimento quando ato considerado de alta traição inflamou os ânimos acirradíssimos dos combatentes.
Arruda contava, parece até que o estou ouvindo neste momento, que havia um preso de justiça em seu piquete. Esse detento, por bom comportamento, tinha tratamento diferenciado. Apelidaram-no de “preá”, pois bastava dar-lhe uma rapadura que ele conseguia trazer do meio da caatinga qualquer cabra ou bode espavorido que por ventura se desgarasse do rebanho.
Conforme Arruda, havia visualizado sinal do Tenente Antônio Benício, delegado de Piancó, para que levasse quatro fuzis e um cunhete de balas para o piquete dele, ao que “preá” retrucou com toda razão ser impossível furar as mil modalidades de ataque dos revoltosos e chegar ao piquete do Tenente do outro lado da rua. Arruda teve a idéia de instruir “preá” para pendurar a camisa branca que vestia em um dos fuzis. Quando o defensor de Piancó saiu à rua com o fuzil hasteando a bandeira branca, imediatamente o código ético-militar da Coluna Miguel Costa – Prestes foi acionado, com os combatentes ensarilhando armas e respeitando a decisão contida no símbolo internacional.
Talvez por não saber o que acontecia na área defendida pelo então Sargento Manuel Arruda de Assis, o piquete do Padre Aristides aproveitou o momento de distração da Coluna Miguel Costa – Prestes para intensificar o tiroteio em direção ao grupo revoltoso. O resultado foi catastrófico, pois a Coluna teve muitos integrantes mortos e feridos.
Daí em diante era ponto capital para os comandados pelo General Miguel Costa e pelo Capitão Luiz Carlos Prestes chegarem ao piquete do Padre Aristides Ferreira da Cruz. A Coluna, então, lutou com gosto, botando para quebrar. Foi em direção dos defensores sediados na residência do vigário de Piancó com vontade de esbagaçar.
Arruda me contava que o Padre Aristides quando viu a coisa ficar preta mandou seu guarda-costa, de nome Rufino, subir no muro para ver o que acontecia. Rufino informou desesperado que a situação era periclitante, pois se fugissem morreriam, se ficassem morreriam do mesmo jeito. Nesse momento, a Coluna lançou duas bombas de efeito narcótico dentro da casa do Padre. O pessoal que lutava bravamente começou a demonstrar sonolência, ao que o Padre Aristides instruiu comerem açúcar. A luta era nos corredores, nas salas, em todo canto, quando uma ordem do comandante da investida, que calassem as baionetas de uma vez só, cessou a contenda, enquanto o Padre Aristides pedia incessantemente garantias de vida para todos.
Covardemente, o comando da Coluna Miguel Costa – Prestes “assegurou” as garantias tetricamente solicitadas. Todos que estavam na casa, incluindo o Padre Aristides e o prefeito de Piancó, o Sr. João Lacerda, bem como o filho deste, foram conduzidos amarrados, parecendo “corda de caranguejo”, usando expressão do Coronel Manuel Arruda de Assis, a um barreiro e lá sangrados, um a um, e não fuzilados. A Coluna Miguel Costa – Prestes era formada majoritariamente por gaúchos, notabilizados pela selvageria das degolas, dos sangramentos, das lutas fraticidas que encharcaram os pampas em épocas passadas, dos tempos das guerras envolvendo o Brasil e os países vizinhos e dos embates dos maragatos com os pica-paus.
Padre Aristides, sentindo-se mortalmente ferido, implorou para que não fizessem aquilo com ele, pois era um sacerdote católico. As humilhações foram intensificadas, pois o martírio do Padre Aristides Ferreira da Cruz e sua gente foi um episódio macabro patrocinado pela ignominiosa covardia, pela efetiva traição de membros de um movimento que se autointitulava revolucionário, reformista, ou seja lá o que tenha sido ou digam ter sido, mas que não teve hombridade Enem humanismo para respeitar as vidas daqueles que já se achavam dominados e impossibilitados da mínima defesa.
Trabalho louvável, de suma importância para a compreensão de nossa história regional, intitulado “A Vida do Coronel Arruda, Cangaceirismo e Coluna Prestes”, de autoria do ilustre Promotor de Justiça paraibano, Dr. Severino Coelho Viana, um dos mais cultos e inteligentes pombalenses, orgulho da terra de Maringá, literato que vem se destacando devido a publicação de obras extraordinárias, a exemplo do supramencionado livro, entre outros escritos, citando ainda “Amor de Cangaceiro”, constitui-se em brilhante contribuição para a literatura sobre o assunto que tanta polêmica suscitou, sobretudo quando dos embates do Padre Manoel Otaviano com o Coronel Manuel Arruda de Assis na época em que ocupavam cadeiras na Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba.

(*) José Romero Araújo Cardoso. Geógrafo. Professor do Departamento de Geografia do Campus Central da UERN. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente.

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